‘De jeito nenhum eu morreria homem’: Como é fazer a transição de gênero aos 70 anos


A norte-americana Wendy Cole passou por cirurgia de redesignação sexual em agosto de 2017.

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Wendy Cole passou por cirurgia de afirmação de gênero em agosto de 2017, aos 70 anos de idade.

Wendy Cole não tem o menor problema em comunicar-se com os fregueses no supermercado onde trabalha, em New Hope, Pensilvânia, nos Estados Unidos. Ela chega a ter fregueses regulares – pessoas que fazem questão de ir ao caixa dela quando ela está trabalhando.

Trabalhar diretamente com consumidores pode não parecer grande coisa, mas é algo que até recentemente Wendy não poderia se imaginar fazendo. Ela passou a maior parte de sua vida profissional escondida num escritório em um subsolo, trabalhando com programação de computadores e desenvolvimento de bancos de dados e raramente interagindo com pessoas.

Tudo isso mudou em agosto de 2017, quando, aos 70 anos de idade, ela se submeteu a uma cirurgia de redesignação de gênero.

“Tomei uma decisão: de jeito nenhum eu ia morrer ainda homem”, ela disse ao HuffPost. “Eu queria viver o resto de minha vida como mulher e vivenciar tudo o que vem junto com isso.”

É uma decisão que Wendy repassava pela cabeça havia 65 anos. Ela contou que desde os 5 anos de idade, percebeu que havia algo de diferente nela. Wendy se recorda de ter ouvido sua avó comentar como “ele era bonitinho”.

“Minha avó falou: ‘ele devia ter sido menina'”, contou Wendy. “E eu pensei comigo mesma, ‘meu Deus, como é que ela sabe?’ Porque era exatamente assim que eu me sentia.”

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Wendy Cole passava seus dias de trabalho no subsolo de sua casa, às vezes se vestindo como queria. Ter que trocar-se e vestir roupas masculinas outra vez era devastador.

O que a ajudou a tomar a decisão de fazer a transição nesta etapa da vida foi a mudança das atitudes públicas e sua compreensão maior do que é ser uma pessoa trans. Mas ela passou décadas lutando para reprimir e “consertar” o que pensava estar “errado” dentro dela. Houve terapeutas, medicamentos incontáveis e uma luta interna constante.

“Eu vivia num lugar emocional muito tenebroso. Era impossível continuar a viver daquela maneira”, ela explicou. “Nunca senti vontade de me matar, realmente, mas essa possibilidade estava presente na minha cabeça. Ou isso, ou fazer alguma coisa para tornar meu sofrimento suportável, para me transformar e ver como seria minha vida a partir disso.”

Passar por esse processo significou iniciar um tratamento hormonal e deixar para trás permanentemente a vida que tinha construído até agora, que incluía os 40 anos de casamento com uma mulher. Wendy disse que lutou tremendamente durante esses anos, mas evitou compartilhar seus sentimentos com sua esposa, até uma noite em 1978 durante um sonilóquio (ato de falar durante o sono), em que falava sobre ser mulher.

“Pensei ‘ok, vou contar tudo para ela e amanhã cedo provavelmente já estaremos divorciados'”, ela contou. “Minha mulher me disse que podíamos continuar juntos, desde que eu continuasse a reprimir esse meu outro lado.”

Wendy sentiu que não tinha outra opção na época, então elas continuaram juntas, vivendo como uma família.

Ao longo dos anos, Wendy tinha alguns momentos de liberdade plena. No porão de sua casa, ela se vestia como mulher – mas ficava profundamente deprimida quando tinha que voltar a usar roupas consideradas masculinas. Uma vez, quando sua esposa estava viajando, ela comprou um par de sapatos de salto, seu primeiro, que ela guarda até hoje.

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Wendy Cole ainda usa o primeiro sapato de salto que comprou na vida.

Hoje em dia Wendy quer aproveitar sua experiência para incentivar outras pessoas que possam estar pensando em fazer cirurgias de redesignação de gênero. Ela destacou o relacionamento positivo que desenvolveu com sua médica, que “salvou minha vida”, diz.

“Já conversei com muitas garotas e as coloquei em contato com minha médica, Rachel Bluebond-Langner, MD, professora adjunta de cirurgia plástica na NYU Langone Health”, ela comentou.

“É uma experiência maravilhosa, porque a maioria dessas pessoas viviam de modo muito semelhante ao meu: muito sozinhas, nunca conheceram ninguém na mesma situação. Para mim, se é assim que você se sente e se isso é quem você é, você tem que fazer [a cirurgia de redesignação de gênero], não importa sua idade.”

As técnicas cirúrgias avançadas usadas por Bluebond-Langner incluem a utilização de robótica em conjunto com o urologista Lee Zhao para realizar cirurgias de afirmação masculina e feminina. Ela explicou por que mais pessoas estão tomando a decisão de fazer a transição de gênero mais tarde na vida.

“Há mais acesso a atendimento médico. Os convênios médicos estão cobrindo o procedimento, então pessoas que antes achavam que não poderiam fazê-lo por razões financeiras hoje estão tendo acesso à assistência que necessitam”, disse a médica ao HuffPost.

Meu “representante” masculino, lá embaixo no porão, estava isolado do mundo e pensava em morrer. Hoje eu não poderia estar mais feliz. É uma alegria avassaladora. Me sinto renascida, rejuvenescida, sinto que ainda não acabei de viver.

Fatores culturais também contribuem para o fato de um número crescente de pessoas transgênero estarem procurando opções médicas para afirmar seu gênero nos Estados Unidos.

Recentemente, uma análise nacional de registros médicos dos Estados Unidos, feita pela Universidade Johns Hopkins, detectou uma alta no número de cirurgias de afirmação de gênero no País. Segundo pesquisadores, isso se deve ao acesso aos serviços de seguro de saúde públicos americanos, como Medicare e Medicaid, ou seguradoras privadas.

No Brasil, o Ministério da Saúde oferece atenção às pessoas nesse processo por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) desde a publicação da Portaria Nº 457, de agosto de 2008. Até 2014, foram realizados 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos em quatro serviços habilitados no processo transexualizador no SUS.

“Hoje há mais apoio e aceitação das pessoas que fazem a transição de gênero”, disse Bluebond-Langner. “Com mais entendimento e conscientização, as pessoas entendem melhor como se sentem e têm o vocabulário necessário para descrever o que sentem.”

Wendy Cole já notou isso pessoalmente. Em 2014, antes de viver como Wendy em tempo integral, ela assistiu à Conferência de Saúde Trans, um evento anual, nem Filadélfia, e ficou espantada com o grande número de pessoas presentes que, como ela, tinham optado em viver de modo autêntico e declarado. “Passei minha vida inteira vivendo como desajustada completa, totalmente sozinha”, ela comentou. “E agora há tanta gente assim como eu?”

Mais que tudo, Wendy acorda todos os dias feliz por estar viva e sentir-se quem ela é de fato, pela primeira vez.

“Olho meu reflexo nas vitrines e penso ‘meu Deus, eu realmente fiz!'”, ela disse. “Meu representante masculino, lá embaixo no subsolo, estava isolado do mundo e pensava em morrer. Agora eu não poderia estar mais feliz. É uma alegria avassaladora. Me sinto renascida, rejuvenescida, sinto que ainda não acabei de viver.”

*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês pelo portal HuffPost BR.


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